Me lembro de quando conheci o Ismael. Nas primeiras semanas,
o estômago nem pensava. Era uma paixão bonito-abestalhada assobiada em clima de
tango que embalava nossas horas. Depois foram surgindo as diferenças, mas
naquele tempo nada passava de uma mosquinha incômoda ao pé do ouvido. “Olha
onde cês tão se metendo”. A gente abanava a orelha e dormia de conchinha. Sai
daqui.
Das diferenças, a maior era de ideias, pequenas e grandes,
que apareciam no fundo das taças de vinho ou no desassossego dos relógios vazios.
Pra resumir, ele era leitor de Diogo Mainardi e eu, uma ferraz contestadora. Do
quê, até hoje não sei – e nem por quê. Falsa idealista num quarto cor-de-rosa, eu me
escondia na barra da saia de meus pais e criticava sem ler jornal, lambuzando
os dedos de profiteroles.
Com a cama e o tempo, fui me acostumando a ler o cara – ou a
ouvir frases levemente geniais que Ismael me gritava, do assento da privada ou
da poltrona da sacada, porque eram espertas demais pra não serem
compartilhadas. E depois de dois filhos e um mundo de diarreias
pseudo-intelectuais que eu ainda insistia em defender, dei de cara com o
estardalhaço. Entrevistas e críticas sobre o quinto livro dele, “A Queda”.
Mainardi falando pelos cotovelos sobre a obra recém-parida e contando com um
tesão de gôzo tranquilo que aquilo é simples e bestamente a história “dele”.
Não dele Diogo, mas dele Tito – seu filho mais velho.
Pra encurtar assunto e post, Diogo Mainardi é pai desse
menino bonito que tem paralisia cerebral. O lance foi causado pelo erro médico
da senhorita que foi responsável pelo parto do pequeno em Veneza, onde Diogo vivia
com a mulher. A italiana resolveu apressar o parto porque era sábado e ela
queria sair logo do plantão, pra tomar vinho e dar a pancetta, sabe-se lá. O
resto vocês vão descobrir pelo próprio livro, que não se deixa ler – se OBRIGA
a ler em uma sentada de três horas. E o que me faz conversar sobre isso às 4h30
da madrugada de uma quinta-feira cansada é, além do pontapé inicial, comovente
em si (e passando longe de sentimentalismos remelentos), a forma com que
Mainardi escancara a história de seu filho pro mundo. A escrita é foda. A
inteligência é foda. Os anos de estudo, leitura e pesquisa sobre qualquer tema que
toque o fato ou o tempo e espaço em que ele se deu são foda. A ironia é foda, e
pra poucos e bons. Mas ei, aqui, ironia e inteligência caminham de mãos dadas,
num casamento deliciosamente metido a besta.
Então, às 4h30 da manhã, volto ao meu marido, que já dorme
seu sono pesado de caminhoneiro Shell, e dou o braço a torcer. Não precisa
chegar no ponto final do livro pra entender a genialidade de Mainardi – essa
sacada se dá já na quinta ou sexta página, quando você entende a motivação e a
cabeça do homem. Mas precisa chegar no ponto final pra entender (e assimilar,
de uma vez por todas) os caminhos que a gente tem que seguir pra fazer das
ideias – e da vida – uma obra de arte, não importa a motivação. Enfim, é pra
acompanhar cada passo – dele e, principalmente, de Tito, que hoje sapateia nas
poças de Veneza pra fazer pais e mães sorrirem, mundo afora – e aprender a lição.
Gostei!
ResponderExcluirVai desempoeirar e voltar a escrever?
Bjo
Post lido!
ResponderExcluirLivro encomendado!
Beijos e abraços enviados!