terça-feira, 23 de abril de 2013

O SACI




6h30: acordo.

6h31: ele diz pra ficar mais um pouco. Não fico. Ele não entende por que eu preciso levantar a essa hora, se o mundo dele ainda está dormindo. Mas eu sei, então não explico muito. “Descansa mais, tá tudo bem.”

6h35: após a primeira mijada do dia e uma escovação de dentes que tem mais função de despertador do que qualquer-coisa-higiênica-e-bonita, passo pelo quarto das crianças. Roncos. Que bom.

6h36: abro a porta que separa o corredor da sala. Domingos, o maltrapilho, soltou tanto pêlo que mal consigo respirar. Eles vêm aos tufos, pretos e espessos feito macarrão de Jedi. E o crioulinho ainda me pula na cara, com seus muitos-quilos-a-mais-que-eu, feliz e matinal, antes de se espantar com meu “sai” mal-humorado de péssima dona de cão. Désolée, Domingos. A vida me fez assim.

6h37: pego a vassoura.

6h38: vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vouvarrendo.
(sério, clique no link acima)


6h45: NET negocia. Boleto do condomínio. 04/36 em atraso do carro. Spam, spam, spam. 36 pessoas pedem sua amizade no facebook. 48 pessoas perguntam por que você não aceitou ainda pedido de amizade no facebook. Telefônica cobra. Comgás cobra. Quem mandou abrir e-mail tão cedo?!

6h46: alguém espirra. Eu só torço pra que o espirro pingue como mais uma horinha de sono, ai, que gostoso. Cubro os dois e volto pro quarto escuro. Não são nem 7h e a vida já pipoca feito piruá na mão do saci.


6h47: eu deito do lado dele e juro que tento fechar os olhos pra dormir mais meia hora antes de levar o mais-pequeno pra escola. Mas acontece que ele já tá lá, na porta entreaberta: o saci. Minha sogra esconjura, diz que é coisa do demônio; minha mãe e meu pai liam sagas de Monteiro Lobato com voz de preto velho pitando – e eu acreditava naquilo mais do que nas rezas benévolas da minha vó; meu marido brinca, mas à noite dorme e pede pra não deixar porta aberta. É que ele sabe do moço que espreita pelas frestas: o saci.

6h59: eu olho pra ele, ele olha pra mim. Ninguém fala nada. Ninguém pode saber. Ele dá uma piscadinha pra mim e sai, pululicando a vida. Me deixa contas a pagar, estragos a consertar, conversas por ter. Filhodaputa de saci, sempre arreliando minha vida. E ainda saco por que não reconheci o espirro, geralmente tão familiar. Era pra infernizar, pra me fazer torcer o paninho. Me sinto tão tio barnabé que nem consigo me mexer.

7h: bom dia. Que dia é hoje? Nem sei. É que todo dia é dia do saci.    

segunda-feira, 22 de abril de 2013

C'EST SI BON!



Os franceses são referência em uma série de coisas: vinhos, roupas, comida. Tudo com um “e” gigante de “elegância”. Beber, vestir, comer e falar francês é chique. E eu, que vivi cinco anos na França e fui alfabetizada nessa língua cheia de erres e bicos, demorei uma boa década pra sacar o porquê disso tudo. Daí leio que nossa garotada brasileira tá ficando gordinha e me pergunto por que os franceses não estão com ESSE problema (assim, grande e maiúsculo, porque eles estão com todos os outros, do desemprego à crise de consciência, merci!).

Acontece que os franceses sabem comer. Mas atenção: isso que a gente conhece aqui como “comida francesa” feita em pseudo-bistrôs não é nada do que se tem por lá. Esqueçam. Francês SABE comer. Me lembro de cada detalhe. Na cantina do colégio, hora do almoço, a ordem era sempre a mesma, nas quatrocentas-mesas-de-oito-lugares-para-oito-crianças: pão, entrada, prato principal, tábua de queijos, sobremesa. Tudo em produção industrial.

Sim, tábua de queijos lá é ordem, não elegância. É nutrição, não glamour. E na casa das amigas loiras de blusa xadrez, os pais me obrigavam lá do alto a sugar com força o que tinha dentro da cabeça dos camarões cozidos. Eu fazia cara de nojo e as Françoises, verruga-na-ponta-do-nariz, me diziam: “Allez, Bianca, já vivemos até os horrores da guerra!”. Minha mãe tentava explicar que a gente gostava da carne bem passada, mas não tinha conversa. Eles serviam o boi sangrando e diziam: “'En France', a gente come assim”. Pois bem. Aprendi a sugar a cabeça dos camarões e comer boi gritando de tão vermelho e assim ensino meus filhotes tupiniquins, no alto de seus 4 e 2 anos de idade.

“Ei, mas os queijos não são gordos?”. Mais oui, monsieurs'dames. Só que criança francesa come pãozinho, salada, carne mal-passada com legumes ao vapor, queijo gordo e fruta. Sempre, todo dia, no almoço da escola e no jantar, em casa. Pergunta onde entra o Cheetos? “Nullepart!” (ou seja – EM LUGAR NENHUM, cara pálida!).

O problema não é comer coisa gorda. O problema é comer coisa gorda que não nutre nem a unha do pé do seu filho. E mais: não adianta querer que seu filho coma direito se você senta do lado dele e bate uma lasanha da Sadia ou um pedaço de pizza rapi-dez. Ele não vai se convencer. A criança francesa come bem porque vê os pais comendo bem – e é convidada a participar desse banquete diariamente, com gosto e gôzo, até que o vinho tinto os separe (às vezes, para sempre). 

Que critiquem os franceses por sua total falta de tato. Mas que nunca os critiquem por não educar bem suas crianças para a boa mesa – e a saúde que vem com ela.