sexta-feira, 11 de maio de 2018

Sobre meus dez dias das mães


Sempre achei fácil ser mãe. E explico o fácil: daquele tanto de avisos que gentis senhôuras dão enquanto abençoam nosso barrigão, tudo sempre me deslizou com um sossego gostoso, vida afora: amamentação, anos de sono picado, choros, dores, meningite. Fraldas, luta pra tirar fraldas, o andar e o correr, tombos, supercílios abertos em quinas de mesa, piolho. As primeiras crises e brigas, decepções, abandono, corações partidos, coordenadoras de escolinha preocupadas, acessos de raiva, gostos e desgostos de um e outro, evolução de personalidade: ei, mãe, eu sou esse aqui.
Tudo tão bom porque vinha deles – e nada que viesse deles poderia deixar de ser tão eles (no fundo tão eu, também, nesse emaranhado bonito de pernas e vidas que faz alguém nascer de você). Quis educar meus meninos para a certeza de que são livres pra ser, pensar e sentir. Lemos livros de pequenos e grandes, falamos de assuntos de pequenos e grandes, pesquisei junto, descobri junto, contei histórias de acertos e erros meus. Algo como “ei, filhos, eu sou essa aqui”.
Acho que por isso nada nunca foi pesado, mesmo nos tempos mais bagunçados. Rolava um bem-estar, de cá e de lá, por sabermos que dava pra gente ser de verdade, mesmo que não concordasse em tudo. A beleza da vida tá justamente aí, no amor e nas diferenças – e no amor pelas diferenças.
Hoje, às vésperas do meu décimo dia das mães, confesso que não acho nada mais tão fácil. E quando eu mesma for uma doce colecionadora de calendários amarelados, vou dar um único aviso, um só: zelem – mas zelem mesmo – pelo que o mundo ensina para os seus filhos. E mundo não é só internet, youtuber de boné, turminha de amigos. Mundo é família, é professor na escola, é pai e mãe. Confiar que o mundo vai respeitar a cabeça e o sentimento de uma criança é a maior ingenuidade – e o pior erro que a gente pode cometer.
Fraldas se trocam, sono se recupera, gripes se curam, acessos de raiva se explicam, corações partidos se apaixonam de novo e de novo, diferenças andam de mãos dadas. Já provar para uma criança que aquilo que ela aprendeu de uma pessoa de confiança talvez não seja verdade – e que adultos, mesmo os que a gente mais ama, são falhos e egoístas – é difícil. Crianças creem, crianças repetem o que ouvem de quem é responsável por cuidar delas. Crianças acreditam em quem diz que educa. Crianças são esponjas de quem tá mais perto, dia após dia. E nem sempre vai ser você.
Então zelem – e nunca confiem o cotidiano da educação dos seus filhos a ninguém. Os valores estão nesse dia-a-dia e as pequenas coisas, que no fundo são as maiores, também. Não é questão de ter mais ou menos tempo livre, mas sim de estar alerta e trazer pra perto quando rola aquele cheirinho de maldade no ar. A leveza da infância deve ser o primeiro e último pensamento de quem educa, numa vigília sem fim. Dependendo de como for feito e por quem for feito, o estrago pode ser grande. Então zelem – e amem, cada vez mais.


quinta-feira, 3 de março de 2016

FELIZ OU VIVA?

Hoje me flagrei pensando forte em felicidade. Poderia achar que por coincidência (mas fatalmente não), já que nas últimas semanas tenho encontrado pessoas – mais precisamente mulheres – que estão às voltas com esse mesmo tema, cada qual do seu jeito, sua idade e uma história diferente pra contar. E aí me veio a lembrança daquele Mac Lanche Feliz. A tal felicidade infantil estaria contida numa caixinha que, fazendo vista grossa a qualquer ideia de boa nutrição, carrega uma receita certa de alegria pra toda e qualquer criança, a menos que seja filha da Bela Gil: nuggets de frango crocantes, batatinha frita quentinha, suco adocicado, um Danoninho gostoso e o tão cobiçado brinquedo da vez. Só que aí a gente abre a caixinha e vê que os nuggets são borrachentos e insossos; as batatinhas vêm pior que pinto de velho - frias e murchas; o suco é tão doce que você nem reconhece o sabor (e olha que aquela foi sua segunda opção, porque a que você pediu primeiro já tinha acabado); o Danoninho chega em temperatura ambiente, numa São Paulo de 30 graus à sombra, e o brinquedo é uma tralha mal pintada que vai ficar esquecida num canto do quarto dentro de 4, 3, 2, 1... Mas mesmo assim você continua fazendo a vontade dos seus filhos, pedindo a tal caixinha e sorrindo amarelo – afinal, você pagou pela ideia de um Mac Lanche Feliz e todos os elementos da tal felicidade macdonaldiana estão lá, certo? Então bora ficar feliz.

A gente às vezes pega no pé dos pequenos por insistirem na refeição de papelão, mas, do alto de nossa experiência madura, faz a mesma coisa com a vida. Ora, se seguimos o script do que todo mundo diz que uma pessoa precisa fazer pra ser feliz, por que cazzo daria errado? Estuda, se forma, trabalha, casa, tem filhos lindos, mora bem (ou tenta), viaja, trepa (ou tenta) e por aí vai. Por que cargas d’água isso não incluiria a gente no rol das pessoas felizes? Por outro lado, quem está infeliz e ainda não tabelou o tal script vai direto na listinha, só pra ver o que tá faltando: “ah, tá explicado! Eu ainda não tenho filhos!” ou “ah, óbvio: eu não encontrei o homem dos meus sonhos!”. E, mais uma vez, por aí vai. Enquanto os elementos da nossa caixinha de Mac Vida Feliz não estiverem completos, a gente vai achando que não se sente feliz e realizada porque ainda faltam os nuggets, o marido, a batata, o sucesso profissional, o brinquedo do mês. E quando a gente consegue finalmente conquistar o conjunto da obra, descobre que não era bem o que a gente imaginava.

Por que será que a mulherada anda tão infeliz? Ou, pior, por que será que a mulherada está se conformando com uma felicidade de mentira, murchinha e insossa, esquecida no canto do quarto? A primeira conclusão a que chego é que tá na hora da gente PARAR – não de se cobrar, que a cobrança gera superação pra caramba, mas de se CULPAR. Em vez disso, que tal se responsabilizar? Culpa é coisa de maria madalena - aquela mina insuportável que fica chorando pelos cantos e gritando "por que será que eu fiz issooooooo???" (been there, done that); já responsabilidade é conseqüência de quem fez e faz escolhas. E os efeitos de uma e outra na nossa cabeça – e na nossa felicidade – são bem diferentes. A partir daí, com mais consciência na cabeça e no peito, a gente precisa ficar alerta pra tomar decisões. E decidir, mudar, mudar de novo e de volta. Tá na hora de descer dessa cruz de santa-siririqueira-chibatada e experimentar um pouco mais a vida, sem medo do que os outros vão pensar – e sem medo de perder a ilusão besta de uma caixinha de papelão, mas fechada e segura, merci.

Em segundo lugar, chega de ouvir aqueles que culpam a gente por tudo. Porque, aí sim, existe uma linha tênue: quem TE responsabiliza por tudo não SE responsabiliza por nada. A porra toda vira culpa, por mais que o interlocutor, quer seja marido, namorado, ex-marido, mãe, pai, irmão ou amiga, queira chamar de outra coisa. E se você não tá a fim de calçar os sapatinhos de madalena arrependida, saiba assumir pra você as suas responsabilidades – e deixar de fora aquilo que, você sabe bem, não leva sua assinatura nessa história.


Em terceiro lugar – e talvez o mais importante –, pare de se definir pelo que as outras pessoas falam de você. Cada um tem uma opinião e uma experiência dos outros, mas ninguém sabe de você tanto quanto... Você. Então, a partir de já, não fale pra ninguém o que os outros acham de você. Simplesmente fale, você mesma, de você. Felicidade não vem em caixinha, não tem receita e nem é um estado constante na vida – ainda bem, senão a gente ia ser um cacho de banana esperando pra ser colhido, sem nada pra fazer na vida a não ser se sentir “feliz”. Mas busque seus momentos de felicidade – e entenda que a satisfação mais gostosa não segue padrões, não cumpre receitas e está na busca, não no resultado. É isso que faz a gente ser mais a gente e, no final das contas, mais VIVA – doa a quem doer.  

quarta-feira, 2 de julho de 2014

XUXA, FUNK E MENSTRUAÇÃO

Estava aqui conversando com uma das minhas fontes da ala sub-18, que me contou que teve um desenvolvimento rápido na infância e menstruou com 9 anos. Não dá pra dizer que foi culpa das gorduras trans pulverizadas na atmosfera pelo Mac Donald's, afinal as mulheres da família dela, todas criadas numa cidadezinha do interior umas três décadas antes - quando a única sombra possível de hambúrguer e queijo processado tava pastando e mugindo feliz no quintal de casa -, já menstruavam aos 8 ou 9 anos. Aí a mãe zelosa levou a nova "mocinha" no médico da família pra uma consulta de rotina. O dinossauro esbravejou: não deixe a menina ver novela ou cenas de beijo na televisão, que essas coisas antecipam a menstruação e causam a sexualização precoce.  

Bom. Eu não sou médica nem sexóloga, mas já coloco a afirmação do Doctor Dino ao lado de pérolas da sabedoria como "grudar uma linha com cuspe na testa do bebê faz com que ele pare de soluçar" e "bater muita punheta deixa os meninos impotentes". Eu comecei a me masturbar com 5 anos de idade - o que obrigou minha mãe a ter comigo uma primeira conversa-mais-ou-menos sobre sexo. A masturbação acompanhou toda a minha infância, de mãos dadas com brincar de boneca, esconde-esconde, escolinha e Banco Imobiliário. E, apesar das minhas minhas taras de Lolita profana, tudo correu com a maior naturalidade possível. Não menstruei aos 6 anos, mas aos 11, como a maioria das meninas da minha geração; não engravidei aos 11, mas dei meu primeiro beijo de língua aos 13, achando bem nojento. Enrolei namorados e quando estava com quase 18 perdi a virgindade, ao invés de ganhar netos. Isso quando metade das minhas amigas já tinha dado e a outra metade estava ainda em vias de dar. 

Esclarecida a questão da menstruação, na minha época os adultos também achavam que a sexualização estava acontecendo cedo demais. Infância curta, crianças andando de saltinho, saindo de balada e transando sem casar. Claro que isso não podia ser fruto da educação mais libertária da época e de avanços (ou retrocessos) que eles mesmos tinham feito na criação dos próprios filhos, então a culpada era a Xuxa. Eu (confesso que) fui bem fã. Amava cantar Ilariê na frente do espelho, apesar de minha mãe não deixar usar bota de cano alto, batom vermelho ou unha comprida até os meus 20 anos (pra ela não era questão de idade, mas de ficar com cara de puta, mesmo). E hoje tudo isso acontece de novo, mas a culpa é do funk - assim como nossos avós garantiam que, no caso dos filhos DELES, os culpados foram o rock e aquele sujeito que rebolava, como era mesmo o nome dele...? Ah, Elvis Presley. Se sua filha menstrua antes dos 10, a culpa é dos beijos na televisão; se sua filha de 12 anos se descobre lésbica, a culpa é da novela das oito, em que elas até casam e têm filho; se sua filha de 15 anos já dá pro namorado, a culpa é da música daqueles maus elementos que se esfregam de shortinho sem calcinha nos bailes-funk dos morros do Rio.  

A conversa-mais-ou-menos sobre sexo que minha mãe teve comigo quando eu tinha 5 anos foi mais-ou-menos-assim: todo mundo faz. Eu faço, seu pai faz, seu irmão ainda não faz, mas um dia vai fazer. Eu e seu pai também fazemos juntos, é o que as pessoas adultas fazem quando se gostam. Mas é uma coisa nossa, assim como tem que ser uma coisa sua. Então faz quando estiver no seu quarto, na hora do banho, usando o banheiro... O resto do mundo não precisa ver. É um momento gostoso e só seu. 

Falar de sexo e viver o sexo deveria ser assim, como numa explicação pra uma criança de 5 anos que não faz A MENOR IDEIA do que a gente tá falando (e pra quem o que a novela mostra, o funk esfrega e a Xuxa canta não importam tanto quanto pra você, que já dá um significado pessoal e intransferível de experiência pro assunto). Eu lembrei isso pra minha mãe quando ela, anos depois e bem menos sabiamente, veio me pedir pra preservar minha virgindade, "que não voltaria mais". Teria sido muito melhor ela me dizer o quanto era gostoso e que, na hora que eu sentisse que tava a fim, era pra deixar rolar mesmo. Namoros terminam, às vezes a gente sofre, depois começa tudo de novo, isso é a vida, né? Existem coisas bem mais importantes pra gente tentar preservar ao longo do tempo. 

É claro que não fico assistindo às melhores cenas de "Azul é a cor mais quente" na frente dos meus filhos pequenos. Ninguém com 3 anos de idade precisa saber como duas mulheres devem fazer pra dar uma boa trepada. Mas não sou eu, do alto da minha geração e das minhas crenças e complexos pessoais, que vou dizer QUANDO eles vão precisar, sim, saber. Nem eu, nem a novela, nem a Xuxa, nem o funk. São eles, no contexto de vida deles e do jeito que eles acharem bom. Isso dito, será que posso dormir tranquila depois de descobrir que ESSE é o novo vídeo favorito dos meus filhos no youtube? 


sexta-feira, 27 de junho de 2014

A MULHER DE HOJE

Estava lendo uma briga de blogueira do Estadão com blogueira da Folha - guerrinha velha e sonolenta - sobre a mulher moderna. Uma diz que foi criada pra ser independente, trabalhar, estudar, falar palavrão, não entender de cozinha e faxina e gostar de uísque como os homens - mas que a sociedade, em contrapartida, não criou os homens pra gostar desse tipo de mulher. A outra replica, com pulga na calcinha: a gente tem é que parar de ser chata. Tem, sim, muito homem preparado pra ser parceiro da mulher moderna - e enquanto algumas ficam ranhetando e falando mal de macho pras amigas na mesa de bar, outras, tão bem sucedidas e independentes quanto elas, estão dando pra eles e sendo amadas, merci.

Nessa briga, ponto pra blogueira da Folha, com certeza. Mas, mais do que isso, fiquei com comichão de dizer que ainda me impressiona - e entedia - essa discussão sem fim sobre mulheres x homens. Aliás, espremendo mais fundo, essa discussão boba de mulheres x mulheres. Me lembrou o dia macabro em que eu, filha de cesariana e mãe por cesariana duas vezes, tive que ouvir a atual mulher do meu pai dizer que "parir de parto natural faz com que você se sinta mais mãe" - outra conversinha pra boi dormir que simplesmente BOMBA nas redes sociais. Não importa se meus filhos saíram por cima, por baixo ou pelo buraco do meu nariz. O que importa é que tipo de mãe sou e vou ser pra eles, numa construção diária e franca, cheia de erros e acertos. Minha mãe foi do caralho, nos erros e nos acertos - e melhor do que muita mãe que botou filho pra fora dentro de banheira cheia d'água. Por isso, quando ela me mostrava a cicatriz e dizia que eu tinha saído dali, eu achava bem lindo. Nada do que vegetarianos de plantão digam vai mudar isso. Porque ela foi, sim, uma mãe do caralho, de quem eu morro de saudade todo santo dia. Imperfeitamente genial.

Então volto à questão da mulher. Me cansa o papinho da "mulher à antiga e submissa" x "a mulher moderna e incompreendida". Tá na hora de entender que tá tudo no mesmo balaio. O pulo do gato não tá em ser independente e bem sucedida, mas sem tempo e paciência pra fazer crochê, nem em ser a dona de casa prendada e a mãe zelosa, mas que não sabe dar um basta pro marido ou ganhar o próprio dinheiro. O segredo (vá lá) tá na individualidade - e em entender a individualidade daqueles "seres do sexo oposto" que a gente esbarra pelo caminho. A gente precisa costurar o que acha bom e ponto. 

Conheço uma mulher que estudou muito, trabalha, é um diamante na carreira, não teve filhos, não gosta de cozinhar. É inteligentíssima, culta, chique, amorosa, emotiva, hilária, perspicaz. Dá sempre sinal de vida na hora certa e faz com que a gente se sinta, entre um átomo e qualquer deus, importante pra cacete. Amo de paixão. Foi a melhor amiga da minha mãe - e, como já disse outra vez, hoje é a única que aceito como mãe-postiça, com medalhinha de honra ao mérito, carinho de quase-útero e dedicatória no meu livro, voilà. Conheço outra que nunca trabalhou fora nem fez faculdade, viveu pra cuidar da filha e do marido, viu os dois morrerem. E hoje, com 88 anos de idade, vive - de novo e ainda, bem pra caralho - pra cuidar dos netos e bisnetos, numa casa em que dá pra lamber o chão e comer polenta à espanhola, ensinando a neta a ser mais sábia e a passar uma porra de uma camisa. Oh fuck! Também amo de paixão. 

Alguém vai me dizer que uma tá certa e a outra errada? Que uma é de outros tempos e a outra atualíssima? E alguém vai me dizer que não posso ser as duas?

My ass, bicthes. Tomo uísque, cerveja e vinho - às vezes os três ao mesmo tempo, com péssimo resultado, tenho que admitir. Falo um francês perfeito, inglês de seriado e português com bastante palavrão; esfrego cuecas de três homens, acordo de madrugada pra servir lanchinhos, sou foda pra dirigir; leio livros de receitas, finanças e psicologia, comando uma empresa de comércio de mágica num shopping superlotado, visito minha avó; cozinho pratos típicos de qualquer lugar do mundo, passo roupa muito mal, converso com jornalistas e produtores de TV, falo bosta em rede nacional, atendo clientes que procuram qualquer saída pra voltar a respirar a vida. Pego meus filhos na escola, brinco e brigo com eles, peço desculpas. Ou não. Escrevo, dou risada com meu marido, amo e durmo de conchinha, falo pra ele sair com os amigos e chamo gente bacana pra dançar Beatles e Beyoncé comigo até o sol nascer. Ou não. Faço o que der na telha. Sou mãe e mulher do jeito que me dá na telha. Não sei de que data ou com que tarja, mas com certeza do jeito que acho bom - e do jeito que aprendi com cada mulher que admiro. E foda-se a tarja delas, by the way. Exatamente como minha mãe - ou não.

Pra quem estiver interessado pela briguinha, claro, eu mando os links. Vale a pena ler:

O primeiro:
http://blogs.estadao.com.br/ruth-manus/a-incrivel-geracao-de-mulheres-que-foi-criada-para-ser-tudo-o-que-um-homem-nao-quer/

E a resposta:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2014/06/1476515-a-incrivel-geracao-das-mulheres-chatas.shtml


terça-feira, 23 de abril de 2013

O SACI




6h30: acordo.

6h31: ele diz pra ficar mais um pouco. Não fico. Ele não entende por que eu preciso levantar a essa hora, se o mundo dele ainda está dormindo. Mas eu sei, então não explico muito. “Descansa mais, tá tudo bem.”

6h35: após a primeira mijada do dia e uma escovação de dentes que tem mais função de despertador do que qualquer-coisa-higiênica-e-bonita, passo pelo quarto das crianças. Roncos. Que bom.

6h36: abro a porta que separa o corredor da sala. Domingos, o maltrapilho, soltou tanto pêlo que mal consigo respirar. Eles vêm aos tufos, pretos e espessos feito macarrão de Jedi. E o crioulinho ainda me pula na cara, com seus muitos-quilos-a-mais-que-eu, feliz e matinal, antes de se espantar com meu “sai” mal-humorado de péssima dona de cão. Désolée, Domingos. A vida me fez assim.

6h37: pego a vassoura.

6h38: vou varrendo, vou varrendo, vou varrendo, vouvarrendo.
(sério, clique no link acima)


6h45: NET negocia. Boleto do condomínio. 04/36 em atraso do carro. Spam, spam, spam. 36 pessoas pedem sua amizade no facebook. 48 pessoas perguntam por que você não aceitou ainda pedido de amizade no facebook. Telefônica cobra. Comgás cobra. Quem mandou abrir e-mail tão cedo?!

6h46: alguém espirra. Eu só torço pra que o espirro pingue como mais uma horinha de sono, ai, que gostoso. Cubro os dois e volto pro quarto escuro. Não são nem 7h e a vida já pipoca feito piruá na mão do saci.


6h47: eu deito do lado dele e juro que tento fechar os olhos pra dormir mais meia hora antes de levar o mais-pequeno pra escola. Mas acontece que ele já tá lá, na porta entreaberta: o saci. Minha sogra esconjura, diz que é coisa do demônio; minha mãe e meu pai liam sagas de Monteiro Lobato com voz de preto velho pitando – e eu acreditava naquilo mais do que nas rezas benévolas da minha vó; meu marido brinca, mas à noite dorme e pede pra não deixar porta aberta. É que ele sabe do moço que espreita pelas frestas: o saci.

6h59: eu olho pra ele, ele olha pra mim. Ninguém fala nada. Ninguém pode saber. Ele dá uma piscadinha pra mim e sai, pululicando a vida. Me deixa contas a pagar, estragos a consertar, conversas por ter. Filhodaputa de saci, sempre arreliando minha vida. E ainda saco por que não reconheci o espirro, geralmente tão familiar. Era pra infernizar, pra me fazer torcer o paninho. Me sinto tão tio barnabé que nem consigo me mexer.

7h: bom dia. Que dia é hoje? Nem sei. É que todo dia é dia do saci.    

segunda-feira, 22 de abril de 2013

C'EST SI BON!



Os franceses são referência em uma série de coisas: vinhos, roupas, comida. Tudo com um “e” gigante de “elegância”. Beber, vestir, comer e falar francês é chique. E eu, que vivi cinco anos na França e fui alfabetizada nessa língua cheia de erres e bicos, demorei uma boa década pra sacar o porquê disso tudo. Daí leio que nossa garotada brasileira tá ficando gordinha e me pergunto por que os franceses não estão com ESSE problema (assim, grande e maiúsculo, porque eles estão com todos os outros, do desemprego à crise de consciência, merci!).

Acontece que os franceses sabem comer. Mas atenção: isso que a gente conhece aqui como “comida francesa” feita em pseudo-bistrôs não é nada do que se tem por lá. Esqueçam. Francês SABE comer. Me lembro de cada detalhe. Na cantina do colégio, hora do almoço, a ordem era sempre a mesma, nas quatrocentas-mesas-de-oito-lugares-para-oito-crianças: pão, entrada, prato principal, tábua de queijos, sobremesa. Tudo em produção industrial.

Sim, tábua de queijos lá é ordem, não elegância. É nutrição, não glamour. E na casa das amigas loiras de blusa xadrez, os pais me obrigavam lá do alto a sugar com força o que tinha dentro da cabeça dos camarões cozidos. Eu fazia cara de nojo e as Françoises, verruga-na-ponta-do-nariz, me diziam: “Allez, Bianca, já vivemos até os horrores da guerra!”. Minha mãe tentava explicar que a gente gostava da carne bem passada, mas não tinha conversa. Eles serviam o boi sangrando e diziam: “'En France', a gente come assim”. Pois bem. Aprendi a sugar a cabeça dos camarões e comer boi gritando de tão vermelho e assim ensino meus filhotes tupiniquins, no alto de seus 4 e 2 anos de idade.

“Ei, mas os queijos não são gordos?”. Mais oui, monsieurs'dames. Só que criança francesa come pãozinho, salada, carne mal-passada com legumes ao vapor, queijo gordo e fruta. Sempre, todo dia, no almoço da escola e no jantar, em casa. Pergunta onde entra o Cheetos? “Nullepart!” (ou seja – EM LUGAR NENHUM, cara pálida!).

O problema não é comer coisa gorda. O problema é comer coisa gorda que não nutre nem a unha do pé do seu filho. E mais: não adianta querer que seu filho coma direito se você senta do lado dele e bate uma lasanha da Sadia ou um pedaço de pizza rapi-dez. Ele não vai se convencer. A criança francesa come bem porque vê os pais comendo bem – e é convidada a participar desse banquete diariamente, com gosto e gôzo, até que o vinho tinto os separe (às vezes, para sempre). 

Que critiquem os franceses por sua total falta de tato. Mas que nunca os critiquem por não educar bem suas crianças para a boa mesa – e a saúde que vem com ela. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

FIM DO MUNDO... AND I FEEL FINE!



Quero que meus filhos cresçam acreditando na morte. A morte na sua elegância exata, assim como ela é, rodriguiana, reconvexa e amedrontadora.

Não sou gótica nem cultuo estatuetas de magia negra escondidas no fundo falso do armário, oxalá. Mas tenho a certeza absoluta de que acreditar na morte faz a gente ser melhor – e conseguir, dia sim, dia não, fazer um pouco mais por nós mesmos e por quem gostamos de gostar. Porque aí não tem essa de paraíso, segunda chance, sete vidas, estamos-aqui-só-de-passagem-e-deixa-que-eu-empurro. A única oportunidade pra fazer qualquer merda, eloquente ou não, boa ou não, é agora. Quer tirar a prova dos sete? Morre aí e me conta. Se um dia neguim vier cutucar o dedão do meu pé pra provar que tô errada, juro que faço um “vale este” nesse blog. Ra.

Não gosto de conversas sobre fim do mundo, salvação de poucos e bons e também dos que estiverem em cima do morro estocando feijão. Se o mundo acabar, ninguém se salva, a não ser as bactérias que vivem em promiscuidade abundante com certos funguinhos no fundo do mar. Na minha casa não tem poréns ou pecados – apenas a promessa doída de que a gente faz, com erros, suor e muito carinho, o possível pra que eles vivam felizes e durmam um sono mais gostoso. E pra que a morte seja um ponto e vírgula, não só um ponto, se a gente conseguir deixar qualquer legado bacana. Amém.