segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ele


Ele gosta de Mac e mergulha batatinhas na mostarda e no catchup, sempre nessa ordem, sempre em abundância. Ele sorri pra parede vazia e diz “tchaaau, Bobô” – que eu não faço a mais vaga ideia de quem seja, mas tem jeito de primeiro melhor amigo. Ele fecha os olhinhos e cantarola no telefone quando o pai tá do outro lado da linha. Já sente saudades, apesar de não entender bem o que é isso. Ele vem correndo afobado e risonho quando me vê esperando na porta da escolinha. Ele tem uma pelúcia preferida – um gatinho daqueles mole-molengas, que ele segura bem apertado até pegar no sono, de mansinho. Ele acorda no meio da noite e grita “dá!” até alguém aparecer e contar pra ele que ainda é noite, que precisa dormir mais. Se deixar, ele sai do berço às 3h e brinca tudo de novo. Ele faz rocambole com as mãozinhas no ar e esconde a cara, imitando alguma música que aprendeu com as professoras e que a tonta da mãe não reconheceu ainda. Mas já sabe também rodar, rodar, rodar, pé, pé, pé, descendo até o chão no caranguejo peixe é. Não é funkeiro, graças ao nosso bom senso, e nem faz ideia do que seja rebolation – mas faz as coreografias do Michael Jackson e assiste This is It de cabo a rabo, numa concentração de gigante estudioso.

Ele dá beijinho na testa e abraça quando vê a gente chorando. Daí me sinto eu meio menina, ele meio paizão, e isso me surpreende tanto que até paro de soluçar feito criança. Ele dirige um caminhão de bombeiro do Cascão e briga com o Domingos, que deixa o rabo comprido no meio do caminho – mas não passa por cima porque já é gente demais pra fazer maldade com bichinhos. Ele já segura a caneta direitinho, apesar de ainda não decidir se é destro ou canhoto, e desenha bolas quase perfeitas. E, com tudo isso, o que mais me impressiona é ver que um belo dia ele pega um carrinho de brinquedo, pro qual nunca deu bola, e arrasta agachado pelo chão fazendo “brrrruuuuuum”. É quando me dou conta de que meu moleque tá virando um homenzinho, daqueles que gostam de futebol e têm preguiça de tomar banho todo dia. Boba de tudo, sinto o queixo tremelicar.

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"Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
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Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?"


Fernando Pessoa

3 comentários:

  1. Ouw, para de judiar desse pai de adolescente que fica aqui querendo chorar de saudades desse tempo bom...

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  2. Que vontade de ver esse pequeno gigante dançando Michael Jackson!
    Logo começam as outras danças da vida, outras fases, tão diferentes mas não menos gostosas.
    Aaaaaahhhh, filhos... (suspirando aqui)

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